Por Marcelo Castello Branco
Vou escrever com o coração, com a alma na mão. João Araújo foi uma das referências máximas na minha carreira, antes mesmo de eu ter decidido por ela. Acompanhava de longe, fascinado, o poder e a influência daquele profissional carismático, preciso, quase cirúrgico no que fazia e realizava. De poucas e boas palavras. Objetivo. Assertivo. E sempre decisivo.
Na primeira década da minha vida profissional, nos corredores das rádios e TVs, ouvia falar do “João Araújo da Som Livre”, quase um mito inalcançável, que havia passado pela Polygram (hoje Universal) como um cometa brilhante e abriu com a Globo um negócio espetacular, mágico, uma gravadora com o poder supremo de influenciar a vida de milhões de pessoas no Brasil. E mudar para sempre a vida de um artista, de vários artistas de uma só vez, muitas vezes, através das trilhas sonoras das novelas: o horário nobre na atenção do brasileiro de então, hipnotizado pelo “plim plim” que ecoava Brasil afora.
E fazia acontecer. Fazia chover no deserto. Às vezes, ainda faz. João Araújo não parou por aí. Criou, nos quase 40 anos de liderança e quase onipresença no mercado, uma gravadora brasileira referencial, única no mercado latino, poderosa, com um magnetismo especial, uma mistura de sua identidade e da própria emissora, vencedora. Uma gravadora nacional com alcance multinacional.
Já na segunda década, nos anos 90, depois de uma passagem pela Sony Music e Warner Home Vídeo, já de volta à Polygram, como diretor de Marketing, fui privilegiado com o acesso mais constante ao João, através de reuniões periódicas para o nosso vitorioso selo comum, o Globo Polydor. Os encontros eram intensos, divertidos, generosos, uma aula de marketing musical e artístico.
Na mesa com Joao Aráujo, Marcos Maynard, Heleno de Oliveira, Max Pierre, Jorge Lopes e Edison Coelho, eu era um aprendiz de feiticeiro. Aprendi muito. Fui para o Chile e anos depois voltei para ser presidente da Universal Brasil e João já era meu guru possível, acessível. Valioso. João era direto, pingos nos is. Ainda no Chile, fui pedir para ele reconsiderar a saída da
Som Livre da distribuição pela Polygram, justo quando eu voltaria para assumir a presidência no país, acarretando a perda de dois dígitos de milhões de dólares do resultado da Cia, logo no meu primeiro ano de exercício.
Educado, carinhoso, mas sempre objetivo, fez o que era melhor para sua empresa, como correspondia. Perdi inevitavelmente um negócio mas ganhei ali um sócio impecável, confiável, que muito nos ajudou nos seis anos de liderança absoluta no mercado, de 1997 a 2003. João tinha várias e incontáveis qualidades, mas o que mais me impressionava era sua capacidade e velocidade no retorno das chamadas telefônicas. João não se escondia nunca, nenhuma crise era capaz de mudar isso. Não tinha mau tempo. Nos piores e melhores momentos, estava sempre próximo, atento.
Defensor insone do mercado, da música brasileira, tentou durante toda sua vida que música fosse considerada cultura, não só negócio. Negócio
rentável, e daí ? Por que não? Foram inúmeras as idas à Brasília, em vão. Durante todos estes anos de convívio formal e informal, no conselho da ABPD ou nos muitos almoços de trabalho, seu mantra era o da música brasileira forte, fértil, única. Música que ele ajudou muito a crescer, apoiando movimentos e utilizando estrategicamente sua proximidade com o poder para eliminar ou contornar perigos. E sua capacidade de
relacionamento com os artistas.
João era sábio. Um visionário realizador, mas altamente intuitivo. Uma vez, no aeroporto de Brasília, depois de mais uma reunião com o governo sobre a pirataria e outras ameaças daquele momento, confidenciei a ele que tinha acabado de assinar com João Gilberto um contrato de três anos. Ele riu, ou melhor, se acabou de rir e me disse: “Se eu tivesse a sua idade, seria tão irresponsável como você”. E me deu um conselho que segui à risca, já que o fato era consumado. O de jamais me aproximar ou falar com João
Gilberto, preservando minha distância como gestor, para que minhas decisões contratuais com ele fossem as mais frias possíveis — se possível.
João Gilberto era um bruxo, dizia, um perigo para enfraquecer quem se aproxima. Segui religiosamente seu conselho. Preferir estar próximo do João, o Araújo. E não me arrependo. O outro João, o Gilberto, só cumpriu uma obra das três contratadas e foi liberado consensualmente. Sem dores. E sem nenhum contato pessoal. Jamais.
Fui para Espanha assumir a Universal na Península Ibérica e mantivemos o contato de sempre. Mesmo depois de sua saída da Som Livre, tínhamos encontros frequentes no seu escritório do Leblon, ou na mesa de um bom restaurante. Eram longos, positivos, sempre gratificantes. Enriquecedores. Adorava ouvir João falar de sua vida, seus erros e acertos, o que pensava sobre tudo que estava acontecendo. Sua visão do novo mercado, seu olhar para as mudanças vertiginosas que vivemos.
Poucos meses atrás, sempre generoso, me convidou para participar com ele e Lucinha da audição dos atores para o musical de Cazuza, hoje já um merecido sucesso. Fui com prazer, me emocionar com eles na difícil escolha.
João Araújo, ao lado de André Midani e Tomas Munhoz, foram os maiores arquitetos executivos da música brasileira. Magos empreendedores, formadores de inúmeras equipes vencedoras. Nos últimos anos, ao lado de amigos comuns, insistimos muito para que ele escrevesse sua biografia.
Mas, uma vez mais, o tempo não para.