Nascido em Buenos Aires, o músico e produtor Torcuato Mariano, 56 anos, está há quatro décadas no Brasil. Guitarrista conceituado, ingressou no universo da música brasileira pelas mãos do mestre Johnny Alf, com quem tocou por quase dois anos. Pra sintetizar seu vasto currículo, ao longo da carreira Torcuato gravou com nomes diversos, tocou em tours de Djavan, Gal Costa e Ivan Lins, foi diretor artístico da EMI e lançou quatro discos, alguns dos quais alcançaram êxito até fora do Brasil. Desde 2012, dedica-se quase que integralmente aos realities musicais da Rede Globo – “The Voice”, “The Voice Kids”, “Popstar” e “Superstar” –, integrando o time de produtores dessas atrações.
Nos últimos 18 meses, aproveitando as eventuais janelas entre um reality e outro, Torcuato concebeu e produziu seu sexto álbum, “Escola Brasileira”, uma homenagem aos artistas que o influenciaram e aos gêneros do Brasil que ele aprecia. Ao todo, são dez canções de sua autoria, uma delas em parceria com Carlinhos Brown (“Cansei de Dor”) e outra com Débora Cidrak (“Beyond the Paradise”). “Poderia ter sido mais um disco de guitarrista, mostrando o quanto ele toca seu instrumento numa ‘cachoeira de notas e de técnicas’ – como tenho observado com outros grandes cobras da guitarra. Mas não, é um projeto para ser saboreado, pela sua música, suas composições e pela participação de músicos e artistas maravilhosos”, afirma o mestre da bossa nova Roberto Menescal, que assina o press-release do disco.
O álbum, que tem participações de Djavan, Cesar Camargo Mariano, Hamilton de Holanda e Gabriel Grossi, está desde maio disponível nas plataformas e deve gerar um show, o qual Torcuato pretende levar a algumas cidades a partir de agosto, sempre que a agenda dos realities da Globo permitir (nesta terça, 30 de julho, estreia a nova temporada do “The Voice”). A seguir, Torcuato Mariano fala de ‘Escola Brasileira” e de outros assuntos ligados à sua carreira:
Show Business + Sucesso!: Fale um pouco sobre a concepção do álbum.
Torcuato Mariano: “Escola Brasileira” é um agradecimento e uma celebração de quatro décadas que marcaram minha chegada ao Brasil, onde fui acolhido musicalmente com todo carinho. É também um tributo a um país com tantas sonoridades, tanta riqueza e tantos artistas ímpares que influenciam músicos pelo mundo afora. Em termos de concepção tem muito de Rio, tem Samba Jazz, Bossa Nova, Bossa Jazz (em inglês), um pouco de Minas Gerais, um pouco de big band e um cheiro de nordeste à minha maneira. E acaba com uma canção só com vocalizes (“Aruanda”), como se fosse uma prece e um pedido de proteçao a essa brasilidade. Nesse momento não posso deixar de lembrar de todo aprendizado e do meu primeiro trabalho que foi com o Johnny Alf.
Fale mais desta fase com o precursor da Bossa Nova…
Eu não conhecia, mas tinha o telefone do Ricardo Santos, baixista que tocava com a cantora Joanna. Liguei para ele, perguntei se ele sabia de alguma oportunidade para me indicar, e para minha surpresa, uma semana depois Ricardo me ligou, oferecendo um teste. Falei, claro! Saí com minha guitarra e meu amplificador, o endereço no bolso, e quando cheguei no local, vi que era o Chico’s Bar, na Lagoa. Um Piano Bar de altíssimo nível que recebia músicos, artistas e executivos da indústria. Bill Evans, por exemplo, tinha tocado várias vezes lá nas suas vindas ao Brasil. Era uma terça-feira à tarde, os garçons arrumando as mesas, tudo meio escuro. O Johnny tocou três músicas, pediu para eu acompanhá-lo e, no meio de uma das canções, um cara numa mesa se virou e falou: “O Johnny, o garoto é bom, pode contratar”. Para minha surpresa, semanas depois descobri que se tratava do Ronaldo Bôscoli. A lenda da Bossa Nova era frequentador assíduo do Chico’s Bar. Tocar com o Johnny durante quase dois anos num lugar que só apresentava músicas de qualidade foi uma escola inigualável. Tudo que adquiri com aquele gênio da música até hoje está presente no meu trabalho. Naquele tempo se falava muito num lugar que já tinha fechado, o 706, onde tinham tocado Djavan e Filó Machado. E eu ouvia muito falar do Edson Machado e seu Samba Novo, Milton Banana e toda a galera do Samba Jazz, que influenciou tanta gente. Por isso, abro o álbum com uma música chamada 706 Night Club em homenagem a essa escola.
Além dessa brasilidade, você insere no repertório elementos da música da Argentina?
Especificamente nesse projeto eu me esforcei para ter um foco, ainda que imprima nas faixas meu estilo pessoal. Mas em outros projetos de que participei e nos meus outros álbuns, faço uma mistura de tudo. Inclusive no meu álbum “So Far From Home” tem uma canção chamada “La Casita Magica” (um tango eletrônico), com a participação de Hamilton de Hollanda. Agora, fique claro: acho muito importante, sempre, cada trabalho ser coerente com a proposta ou o momento do artista – então buscar uma unidade é fundamental.
Fale sobre a participação do Djavan na faixa “Cansei de Dor” e sobre a parceria na composição com o Carlinhos Brown.
O convite se deu porque a música do Djavan está presente na minha vida desde que ouvi “Meu Bem Querer” no rádio pela primeira vez, em 1977/78. Depois, quando comecei a tocar com o Johnny, a incluímos no repertório, junto com “Cerrado” e “Capim”. Tempos depois eu passei a integrar a banda dele. Aliás, aprendi muito com Djavan no dia a dia. Por tudo isso, fazer um álbum com esse título e não tê-lo comigo não faria sentido. Na verdade eu trabalhei quase que todo ano de 2018 no disco e a música para o Djavan gravar ainda não tinha sido composta. No finalzinho de novembro, eu estava no estúdio, compondo, e de repente a música nasceu inteira, melodia e harmonia. Liguei então para o Carlinhos Brown e sugeri que ele fizesse a letra. Mandei a melodia e três horas depois recebi uma letra linda, uma poesia. Quando o Djavan foi pro estúdio e começou a cantar, eu fiquei muito emocionado, parecia que a música já existia. Ainda por cima ele fez um improviso lindo. No dia seguinte, ouvindo, pensei: ‘Caramba, ficaria incrível se o Cesar Camargo Mariano tocasse o piano. Cesar é minha referência desde que cheguei ao Brasil. Mas não sabia se ele iria topar. Quando ele concordou eu vibrei, dei quatro cambalhotas. O piano do Cesar ficou genial na canção. Assinatura única. E ainda dobramos o solo de voz do Djavan. Achei mágico o resultado final – mais ainda com a mixagem do Moggie Canazio, que considero um dos maiores engenheiros do mundo.
Fale sobre os outros músicos que participam do álbum, em especial o Gabriel Grossi e o Hamilton de Hollanda.
Basicamente todos os convidados são músicos que eu admiro e que, de uma maneira ou de outra, me influenciam com suas qualidades musicais mesmo tocando outros instrumentos (que não guitarra). São pessoas que aparecem no meu inconsciente quando estou fazendo música. O Hamilton de Holanda é um monstro. O que ele faz com o bandolim, a beleza da música dele, aliada ao conhecimento profundo (seja da técnica, seja de música em si) para mim são inigualáveis. É instigante e impressionante esse mix de virtudes que o Hamilton tem. Fora o ser humano que ele é. Tive a sorte de produzir um álbum dele, “Música das Nuvens e do Chão”, e foi uma experiência incrível. O Gabriel Grossi faz da gaita um instrumento de expressão. Cada solo dele é literalmente um conto. Tocando, Gabriel tem uma “liga” que poucos músicos tem. Ele não se repete, está em conexão com a criação o tempo todo.
O que dizer do Menescal, que assina o release do disco?
Menescal é uma referência desde os tempos do Chico’s. O “Barquinho”, “Você”, “Bye Bye Brasil” eram músicas que tocávamos quase que diariamente. São obras de arte. Além disso, ele é um guitarrista/violonista de mão cheia, com um toque jazzístico pessoal. Me identifico com o lado músico do Menescal, sem necessidade de tocar mais do que a música pede. Isso é uma escola, a escola do bom gosto, da maturidade em prol da música. E com o tempo, eu descobri que ele era produtor e que foi diretor artístico no auge da Polygram. Quer dizer: um cara que fez de tudo pela música, em todos os sentidos, com a mão na massa. Fez empunhando o instrumento e também como executivo. No meu álbum “So Far From Home”, fiz uma canção dedicada a ele e ao Marcos Valle, cujo titulo em português é “No Vale do Menescal”. Mas o álbum só saiu nos Estados Unidos, e lá o título ficou “Ipanema Sunset”. Quando estava terminando “Escola Brasileira”, liguei para o Menescal, para lhe mostrar o resultado. A aprovação dele indicaria para mim que o sentimento do trabalho estaria dentro da música. E essa leveza que ele tem traduzida em música sempre me tocou e me influenciou muito. Felizmente Menescal gostou do álbum, tanto que topou escrever o release.
Você chegou a acompanhar (em gravações e tours) vários artistas. Fale sobre essa fase.
Eu toquei com muitos artistas que admiro – Djavan, Flavio Venturini, Ivan Lins, Marina Lima, Gal Costa… Produzi um álbum do Flavio Venturini, “Noites com Solo” (1994), de que me orgulho muito. É um artista com quem mantenho bastante contato, sempre que podemos nos falamos. Aprendi muito também com o Ivan Lins, com quem fiz duas tours internacionais – Europa e Japão. Ivan é dos maiores compositores do mundo. Acho que das pessoas com quem toquei, Djavan, Flavio e Ivan foram aquelas de quem mais absorvi ensinamentos e influências.
Você tem trabalhado nos Estados Unidos? Pode citar alguns trabalhos importantes realizados por lá nos últimos anos?
Antes de sair no Brasil, meus álbuns foram lançados nos EUA, pela Visom (de Carlos de Andrade), gravadora que acreditou em mim no começo. O primeiro, “Estação Paraíso”, teve músicas que chegaram a tocar no rádio no país norte-americano. Aí fizemos o segundo, e a faixa “Ocean Way” ficou nos primeiros lugares nas FMs “adult contemporary” durante seis messes. Tocava muito mesmo. Em 1996 fui chamado para ser A&R da BMG e depois da EMI e por isso me afastei um pouco do meu trabalho como artista, o qual retomei em 2004 com o álbum “Diary’. Mas durante todo esse tempo o airplay de rádio nos EUA foi muito forte. Em 2007 lancei “Lift Me Up”; em 2009, “So Far From Home”. E agora, volto com “Escola Brasileira”, que também deve sair por lá. Como músico, destaco minha participação, em 2009, como convidado do álbum do Michael Lington – gravei em Los Angeles, ao lado de Greg Philinganes, Vinie Colaiuta, Neil Stubenhaus. E em 2017 participei da gravação do novo álbum da cantora e compositora argentina Claudia Brant (produzido por Moggie Canazio e Cheche Alara), que ganhou o GRAMMY Awards neste ano na categoria “Melhor Álbum Pop Latino”.
Além da faixa gravada por Djavan, que outras você destacaria?
Eu gosto de todas, porque cada uma conta uma história. Pra citar duas outras, destacaria “Ouro de Minas” e “La Band is Big”, por estarem dentro do contexto de big band e orquestra e porque tive a participacão nos arranjos de Jesse Sadoc e Rafael Rocha.
Ouça o álbum “Escola Brasileira”, de Torcuato Mariano: